Multiplicam-se os vigilantes que não toleram ninguém na rua e disparam a eito: acertam em médicos, enfermeiros e portadores de deficiência. No outro ponto da loucura estão as justificações mais absurdas para quebrar o confinamento
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"Vai para casa, palhaço!", gritaram à varanda. "Para lá vou, senhora, depois de 15 horas a trabalhar no hospital. Obrigado!", respondeu o médico. Este é apenas um exemplo que se tem multiplicado por Espanha, num fenómeno apelidado de "Gestapo del balcón [varanda, em português]".
Dominados pelo medo e irracionalidade, num país com números dramáticos no combate à covid-19, a estes vigilantes parece impossível haver motivos para estar na rua, e os insultos, ovos e cuspidelas acertam em quem não merece: profissionais de saúde, operadores de supermercado, funcionários de limpeza e até portadores de deficiência e acompanhantes.
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"Às oito aplaudem-me na varanda e às nove insultam-me", desabafa um médico. A um farmacêutico de Oviedo nem lhe valeu o facto de os vizinhos saberem que é o dono da farmácia lá da rua. Calhou fazer o curto trajeto até casa (depois de um turno de 12 horas) durante a homenagem nas varandas, e os recados choveram-lhe no telemóvel, como se tivesse feito de propósito: "Que grande lata, chegar a casa mesmo durante os aplausos!"
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Das Astúrias chega também o relato da mãe de Martín, três anos e meio e autista. Não fala, não socializa, e a mãe teve literalmente que fazer um desenho num cartaz - "O menino é autista" - para o chorrilho de horrores da vizinhança cessar, enquanto o pequeno apanhava um pouco de ar. "Por culpa de gente como tu é que morrem pessoas, filha da p... oxalá morram", atiraram.
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A propósito dos portadores de deficiência, corre em Espanha a sugestão de que estas pessoas, perfeitamente autorizadas a sair de casa pelas normas do estado de emergência, circulem com uma bracelete azul. "Já somos demasiado estigmatizados", responde a mãe de um rapaz de 22 anos com atraso cognitivo, a quem os vizinhos perguntaram se estava louca. Só ia à padaria na companhia do filho... Também há quem se tenha lembrado da estrela amarela que os judeus tinham de usar durante o nazismo.
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Despejar o lixo a cinco quilómetros de casa
Talvez a Gestapo das varandas se sinta legitimada quando se depara com as desculpas inacreditáveis que se apresentam à polícia para furar a quarentena. Fonte da Polícia Municipal de Madrid admitiu que o diário "El Confidencial" que recebe muitas denúncias de pessoas que procuram infratores pela janela. Contudo, há quem abuse da sorte. Despejar o lixo a cinco quilómetros de casa, afastar-se 20 para comprar pão, sair para alugar um filme no videoclube, ir para a fila da farmácia e voltar para o fim quando a sua vez chega, ou ir lá medir a tensão três vezes por dia, passear o cão dez vezes... tudo serve para passar menos tempo em casa. Ainda assim, o prémio vai para o senhor madrileno de 77 anos multado por andar na rua... a caçar Pokemons.
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