“Senti-me inferior, pequena”. O desabafo é de Andreia Fortunato, ex-jogadora do Associação Desportiva de Esposende (ADE), referindo-se aos desafios que ser mulher representa num desporto que apenas é visto como rei quando praticado por homens. O tom crítico é transversal a muitas jogadoras
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O apito inicial quebra o silêncio. Nas bancadas, os poucos adeptos presentes fazem-se sentir como se fossem uma multidão, provando que a paixão pelo futebol é maior do que o número de lugares ocupados. Em campo, as jogadoras avançam com a determinação de quem sabe que cada jogo é uma oportunidade. No entanto, embora a energia que demonstram não deixe dúvidas de que aqui se joga futebol de verdade, o talento e o trabalho árduo não são o suficiente para conquistar o reconhecimento que o futebol feminino merece.
Apesar da evolução significativa que a modalidade tem vindo a registar ao longo dos últimos anos, tanto as jogadoras, como a equipa técnica e muitos dos adeptos sentem que o futebol feminino está longe da igualdade. Dentro das quatro linhas brancas, as dificuldades são sentidas de forma crua por quem veste a camisola.
Aos 18 anos, Andreia Fortunato viu-se obrigada a abdicar temporariamente do seu sonho de ser jogadora profissional quando se deparou com a dificuldade de conciliar o horário escolar com os treinos tardios. “Desisti porque mudei de cidade e, embora tenha sido aceite numa ótima equipa em Lisboa, não tinha horário compatível para ir aos treinos”, revela a atleta. A jovem acrescenta ainda que “os clubes deveriam ter a preocupação de oferecer melhores condições às jogadoras no que toca a estabelecimentos e a equipamentos”. A juntar aos horários de treino tardios por falta de staff, a falta de apoio médico regular e os espaços de treino partilhados com outras formações devido às condições precárias dos campos acabam por ser uma queixa frequente entre as atletas e a equipa técnica.
A escassez de equipas femininas torna o ambiente ainda mais competitivo. “É muito difícil subir e ser vista, especialmente em zonas com menos equipas que acabam por ter poucos espectadores”, confessa a ex-jogadora.
Com poucos lugares disponíveis em clubes estruturados e ainda menos hipóteses de alcançar a profissionalização, cada minuto em campo é visto como uma chance para se destacarem e para deixarem a sua marca. Durante o percurso como jogadora, Andreia Fortunato sentiu na pele as dificuldades de jogar num clube pequeno: “Na zona onde morava só havia uma equipa de futebol feminino e era sénior. Tive de trabalhar o triplo para ser sequer considerada opção e de lutar pelo meu lugar para ser levada a sério.” A experiência partilhada pela jovem atleta é comum à de muitas mulheres que perseguem o sonho de jogar à bola, num ramo que nem sempre abre portas de maneira justa. A falta de apoio por parte das ligas e dos adeptos é mais um desafio que torna o percurso de quem quer fazer do futebol o seu lugar ainda mais complicado.
Embora o interesse dos portugueses na modalidade tenha aumentado, bem como os investimentos monetários provenientes da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), da Liga Portugal, da UEFA e dos próprios clubes, ainda há muitas arestas a limar para que o futebol feminino tenha mais visibilidade. Leonor Faria, guarda-redes do Sport Futebol Damaiense, e que já representou a Seleção Portuguesa sub-19, abre o seu coração ao falar da falta de apoio: “É necessário existir ações que mostrem que, de facto, apostam no futebol feminino. Por um lado, a FPF e a liga ajudam nisso, mas por outro são as primeiras a cortar as pernas ao futebol nacional.”
Numa realidade em que as mulheres têm de mostrar mais garra do que os homens, o talento parece não ser suficiente para vingarem neste ramo. Leonor Faria defende que é urgente ultrapassar a barreira que ainda separa o futebol feminino do masculino. “Enquanto um rapaz da minha idade consegue estar num escalão sub-19 a receber bem, eu tenho de lutar o triplo para conseguir receber isso num plantel de uma equipa principal”, critica a guarda-redes do Damaiense. Tal como Leonor Faria, também Andreia Fortunato partilha o mesmo pensamento no que diz respeito à necessidade de ultrapassar esta barreira: “Acho que os adeptos devem apoiar ambas as equipas com a mesma dedicação.”
Apitar em terreno desigual
Se dentro das quatro linhas é preciso lutar por respeito, quem segura o apito fora de campo enfrenta uma batalha igualmente difícil. Apesar de serem, muitas das vezes, desrespeitadas e desvalorizadas, a presença de mulheres nas equipas de arbitragem tem vindo a crescer. Como refere a árbitra Patrícia Barros, “este ano têm surgido grandes mudanças”. É importante apostar em quem tem qualidade para mostrar que as mulheres estão igualmente preparadas para estes palcos. “As competições masculinas são bastante difíceis. Por isso, é bom haver lá mulheres a apitar para demonstrar que, efetivamente, algumas conseguem”, acrescenta. Embora as exigências no processo de ascensão de categoria sejam comuns tanto para homens como para mulheres, a árbitra realça que “a diferença surge, sobretudo, a nível nacional, dada a menor quantidade de quadros femininos disponíveis”. Atualmente, existem apenas quatro, o que limita o número de lugares ocupados por mulheres nesta área.
Para quem procura destacar-se na arbitragem, a credibilidade é um dos maiores obstáculos que enfrenta dentro de campo. “Em muitos dos jogos masculinos que já apitei, senti que os jogadores não nos levavam a sério e acabavam por ignorar quaisquer indicações dadas durante o jogo. É uma coisa que me enerva solenemente e já aconteceu bastante”, confessa. Ainda que se manifeste de maneira subtil e discreta, esta falta de respeito identificada por Patrícia Barros revela o longo caminho que ainda há que percorrer no futebol português.
Desafios invisíveis
O trabalho da equipa técnica também não escapa às desigualdades que o meio apresenta. Carlos Fernandes, atual treinador do Olímpico Montijo, salienta a discrepância entre a forma como o futebol masculino e o feminino são vistos. “No masculino, há mais reconhecimento e mais projeção, ao passo que no feminino, sentimos constantemente a necessidade de justificar o nosso trabalho”, desabafa. Sem treinadores qualificados ou preparadores físicos, o desenvolvimento profissional das jogadoras acaba por se tornar mais lento e limitado. “Há muita paixão envolvida, mas também cansaço. Trabalhamos com menos recursos, mas mesmo assim continuamos a ser vistos como uma espécie de plano B”, acrescenta o técnico, lamentando as condições que a FPF disponibiliza às ligas femininas. No entanto, é o desejo de ajudar as atletas a alcançarem os seus sonhos que o move: “Vejo em muitas delas um futuro no profissional e quero fazer parte disso.”
Ainda que a caminhada a percorrer seja longa, é fundamental que a FPF reconheça o trabalho e esforço da equipa técnica. Entre frustrações e limitações estruturais, são os treinadores, treinadores-adjuntos e preparadores físicos que se preocupam em formar atletas, bem como a impulsionar as suas carreiras. Apostar no seu
desenvolvimento profissional e valorizar o empenho e a dedicação, não só é uma maneira de garantir o crescimento profissional de mais atletas, como também é investir no futuro do futebol feminino. Como sublinha Carlos Fernandes, “só precisam de alguém que aposte nelas, o resto elas fazem sozinhas”.
Vozes que tentam calar
As questões estruturais que acompanham o universo futebolístico têm, segundo Patrícia Barros, origem num problema ainda mais profundo: o preconceito. Num desporto que ainda as trata como secundárias, são inúmeras as vezes em que as mulheres interessadas em futebol se sentiram totalmente desrespeitadas e desvalorizadas. “Comentários que começam apenas como uma piada de mau gosto, rapidamente evoluem para insultos maldosos e até ameaças. Já ouvi de tudo. Desde o típico ‘vai para a cozinha’, até ‘cá fora vais ver o que te acontece…’. É assustador pensar que cada comentário infeliz destes se deve apenas por não gostarem de alguma decisão minha enquanto árbitra”, revela. Ainda assim, há quem consiga transformar este ódio em motivação para continuar a atingir os seus objetivos. “Lembrava-me sempre que é com força de vontade que os objetivos são alcançados e que quem criticava não estava em campo, mas sim a tirar tempo da sua vida para me criticar”, afirma Andreia Fortunato, ao partilhar como lidava com os comentários pejorativos.
Se o objetivo da FPF é aumentar o crescimento do futebol feminino em Portugal, as jogadoras consideram determinante que esta entidade aposte em medidas que combatam as desigualdades nele presentes. Uma das formas poderia ser, por exemplo, apostar em campanhas públicas de sensibilização, como aconteceu com a Orange, empresa de telecomunicações e patrocinadora oficial da seleção francesa de futebol, durante o Mundial de Futebol Feminino de 2023. A campanha, que viralizou nas redes sociais e tinha o intuito de dar reconhecimento à qualidade técnica da seleção feminina, centrava-se num compilado de lances e técnicas espetaculares, que mostravam ter sido realizados pelas estrelas da seleção masculina. No entanto, a meio do anúncio, era revelado que esses lances não foram obra dos jogadores da equipa masculina, mas sim feminina. O anúncio foi possível através do recurso a inteligência artificial e efeitos visuais que foram usados para substituir as atletas pelos jogadores e provocar impacto no público. Aplicar medidas como esta seria uma forma de mostrar que o talento das jogadoras não é inferior.
“A melhoria das infraestruturas, o aumento salarial, o apoio médico e psicológico para as atletas, a criação de mais clubes e escalões, o reforço na formação de treinadores, bem como o aumento da visibilidade do futebol feminino, através de patrocínios e das redes sociais”, também são medidas que, no entender de quem sonha em praticar este desporto a nível profissional, poderiam ser aplicadas pela FPF. Com a mesma convicção de quem remata à baliza, Andreia Fortunato reforça o quanto estas medidas seriam determinantes para o futuro do futebol feminino: “Permitem o aumento de interesse na modalidade por parte dos adeptos e criariam condições dignas para as atletas treinarem.”
Autora
Margarida Luz
É estudante do 1ºano de Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), em Lisboa, formação que acredita ser a ideal para consolidar o sonho de exercer a profissão no estrangeiro. Durante muito tempo sentiu-se perdida em relação ao futuro e sem uma direção clara, até perceber que o que a move é a vontade de reportar os acontecimentos do mundo, em particular, na área do desporto.