Para elas, não é só uma bola de futebol. É um sonho. Não é apenas um relvado, mas o centro de um objetivo a cumprir. Dentro de campo, a garra e a emoção dominam os quatro cantos. Fora de área, existe a mesma energia incansável para fazer fintas aos preconceitos diários e marcar golos no reconhecimento da sua profissão
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Na vibrante arena do futebol, onde o protagonismo é tradicionalmente masculino, as jogadoras não disputam apenas com as adversárias de competição. Entre dribles e chutes, enfrentam rivais invisíveis: barreiras estruturais e culturais com que se deparam no dia a dia.
A falta de investimento na área é notável, a disparidade salarial é chocante e a cobertura desigual dos média preocupa as profissionais. “Sinto que nos estão a desprezar e que não nos levam tão a sério como aos homens”, desabafa Beatriz Neves, jogadora do Estrela da Amadora.
O gosto pelo “jogar à bola”
Desde os primeiros toques nas cabeças de nenucos da irmã, até aos dribles na Liga dos Campeões, Jéssica Silva, jogadora do Sport Lisboa e Benfica, sentiu, muito prematuramente, o futebol a pulsar-lhe nas veias. “Sinto que o futebol nasceu mesmo comigo. O meu falecido pai já jogava. Acho que foi algo genético”, afirma a jogadora. A paixão por este desporto foi cultivada desde muito cedo. No entanto, só aos 14 anos entrou para o seu primeiro clube de futebol: “Eu cresci a jogar futebol e naturalmente as coisas acabaram por acontecer muito rápido.”
O fascínio pelo futebol pode nascer de momentos inesperados. Foi assim para Beatriz Neves, cujo amor por esta modalidade floresceu durante uma simples partida no intervalo das aulas. “O futebol foi o desporto que me salvou nas fases mais complicadas da minha vida”, revela.
Apesar do preconceito que ainda ronda o futebol feminino, as jogadoras nunca hesitaram em demonstrar a sua paixão pelo correr atrás de uma bola. "Não podemos ter receio de mostrar aquilo de que mais gostamos de fazer”, declara Ana Beatriz Alves, jogadora do Atlético Clube da Malveira.
Em campo e na vida
No intenso universo do futebol, as mulheres têm enfrentado uma série de obstáculos e batalhas para conquistar o seu espaço. Se hoje vemos jogadoras portuguesas a destacarem-se em competições europeias e clubes a investir mais no futebol feminino, esta trajetória esteve longe de ser isenta de desafios. “As dificuldades de hoje não são as mesmas de ontem. Embora o cenário esteja em constante evolução, os entraves continuam a ser uma realidade para muitas atletas”, afirma a jogadora do Benfica.
Historicamente, o futebol feminino foi sempre visto como uma anomalia, um espaço onde as mulheres eram interpretadas como intrusas, num território maioritariamente masculino. “As pessoas ainda torcem o nariz, quando digo que sou jogadora de futebol”, afirma Ana Beatriz Alves. Profundamente enraizado na cultura desportiva, este preconceito reflete-se também na forma como as atletas são frequentemente questionadas sobre a qualidade da sua performance, algo que, como partilhou uma das jogadoras, não acontece no futebol masculino. “Questionavam-me, muitas vezes, se sabia fazer certas coisas, como se eu enquanto mulher não o conseguisse. Normalmente, os homens não sofrem este tipo de perguntas e de julgamento”, relata a mesma jogadora.
Cartão vermelho fora de campo
Preconceito. Julgamento. Discriminação. Três conceitos muito conhecidos, infelizmente, pelas jogadoras deste desporto. Assédio e racismo são duas sombras persistentes que continuam a amedrontar o futebol e, assim, afetam a vida de muitas atletas. Estes problemas, embora frequentemente varridos para debaixo do tapete, são reais. Não é apenas "um assunto difícil de abordar", como afirma Jéssica Silva; é algo que se esconde nas sombras. Um caso emblemático é o da jogadora da Seleção espanhola, Jenni Hermoso, que foi beijada sem consentimento pelo diretor da Federação Espanhola, Luis Rubiales. A jogadora espanhola, sentindo-se amedrontada e incapaz de reagir, descreveu a situação como "um gesto natural de afeto e gratidão". Apesar disso, após o jogo da final do Mundial contra a Inglaterra, foi questionada novamente sobre o assunto, em
que respondeu: “Não gostei… Mas o que ia eu fazer?”. Jéssica Silva mencionou este caso, como exemplo de uma situação que voltou a trazer o tema do assédio à superfície.
Muitas jogadoras enfrentam situações de assédio, como estas, que vão desde comentários inadequados até avanços mais sérios. No entanto, a normalização do assédio na sociedade impede que essas histórias sejam contadas e, consequentemente, que as vítimas recebam o apoio necessário. "Quando falamos, é um choque muito grande. Mas a realidade é que ele existe. Existe mesmo", denuncia.
As vítimas são, muitas vezes, culpabilizadas. Este estigma social cria um ambiente em que muitas mulheres preferem não falar sobre as suas experiências. "As vítimas ainda sofrem muito com o julgamento social. A sociedade ainda acha que nós é que nos «metemos a jeito». É muito triste, mesmo", desabafa Jéssica Silva, demonstrando a urgência em mudar esse problema.
Além do assédio, o racismo é outra ferida profunda no futebol feminino. "Ele sempre existiu, mas andava escondido", revela a jogadora do Benfica, enquanto aborda a experiência pessoal com o preconceito racial. Apesar da evolução notável em algumas áreas, este tópico parece ter ficado estagnado. “É um assunto que é muito sensível e devia ser mais falado”, defende.
Do sonho à realidade
Para algumas, é um passatempo. Para outras, um emprego. Contudo, há algo que une as jogadoras: a paixão. No coração do futebol feminino, Beatriz Neves e Ana Beatriz Alves destacam-se não apenas pelo talento em campo, mas pela inspiração que encontram numa figura singular: Jéssica Silva. Para a jogadora do Atlético Clube da Malveira, a influência desta jogadora vai além da sua habilidade. "Não é por ser da minha posição, mas é uma figura muito inspiradora. Pela luta, pela garra e pela força", confessa Ana Beatriz Alves, com brilho nos olhos.
A jogadora promissora do Estrela Amadora, Beatriz Neves, revela o quanto Jéssica Silva tem sido um pilar na sua carreira. Com uma convicção inabalável, a jogadora confidencia: "Ela ensinou-me a não desistir. É, sem dúvida, um dos maiores ídolos do futebol que eu tenho."
A presença de Jéssica Silva no futebol feminino português transcende o campo. Para estas jovens atletas, ela é um exemplo vivo de resiliência e determinação, um farol que ilumina os caminhos e incentiva a lutar pelos sonhos. "Sinto que há aqui algum mérito. Tive a capacidade de lutar e não desistir. Ignorei as vozes de preconceito e de quem duvidava. O meu sonho era ter um contrato profissional e fui sempre atrás disso”, diz a jogadora do Benfica. "Sempre soube que poderia marcar o futebol feminino de uma maneira diferente. Fui sem medos", afirma.
Com garra e determinação, Jéssica Silva deixa no coração das jovens atletas a semente plantada, o bichinho despertado.
Pé na bola, cabeça erguida
Todos os dias, as jogadoras de futebol tentam tornar o futebol feminino num lugar seguro e pronto para receber, de braços abertos, novas sonhadoras.
As redes sociais revelaram ser o parceiro ideal para as atletas, ajudando-as a partilhar a paixão e a mostrar o seu exemplo enquanto mulheres, num desporto tão desafiante como é o futebol. “Uso muito as minhas redes sociais para expor a minha experiência no futebol e falar de forma a encorajar outras pessoas. Sinto que incentivo muitas raparigas a jogar. Quantas mais formos, mais o futebol feminino será valorizado e reconhecido. A minha maior contribuição é não ter vergonha de demonstrar a minha paixão”, admite Beatriz Neves.
Não é só dentro dos quatro cantos do relvado que a magia deve acontecer. É importante apoiar causas, mostrar a cara e dar a conhecer ao mundo o poder que as mulheres têm vindo a ganhar no universo efervescente do futebol. Jéssica Silva sente bastante responsabilidade em mostrar aos seguidores que o seu papel no futebol feminino “vai muito para além de ganhar taças e conquistar títulos.” O seu maior objetivo é – confessa - “um dia, acabar a carreira e deixar o futebol num lugar melhor”.
É necessária uma mudança, uma evolução. Jéssica Silva reafirma a sua preocupação: “Temos de dar voz aos diversos problemas que já conhecemos para tentar consciencializar as pessoas e solucioná-los.”
Autoras
Madalena Filipe
Madalena Filipe é estudante da licenciatura em Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS)-Instituto Politécnico de Lisboa (IPL). Motivada pela curiosidade sobre o mundo e pela paixão por comunicar, a jovem de 19 anos decidiu escolher esta área profissional, convicta de que é a aposta certa para construir um mundo mais justo, equilibrado e verdadeiro.
Mariana Lopes
A escrita e a comunicação sempre a fascinaram. Mariana Lopes, 19 anos, é estudante do 2ºano de Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS) - IPL (Instituto Politécnico de Lisboa). Através da ESCS Magazine, um dos projetos extracurriculares da instituição onde estuda, dá voz a algumas das suas múltiplas ideias nas editorias de Opinião e Música.