Corpo do artigo
Parece que o Blatter já aceita a ideia de recorrer à tecnologia para evitar erros como aquele chute do Lampard que bateu no travessão, entrou meio metro e não valeu. Mas ainda tem gente que resiste, por várias razões. A tecnologia desprestigiaria os árbitros. Interromperia as partidas e poderia criar mais controvérsias do que as que solucionaria. E a que parece ser a objecção principal: mudaria o futebol, cujas regras se alteraram muito pouco desde o século XIX, e cujo conservadorismo - com erros e tudo - faz parte do seu encanto. Em suma, o futebol perderia sua autenticidade, que inclui a falibilidade de juízes e bandeirinhas e a possibilidade de xingá-los por semanas.
O que me lembrou uma história que contam sobre C.S. Lewis, medievalista, filósofo do cristianismo, professor respeitado, mas que ficou famoso mesmo como autor de "As Crónicas de Nárnia". Certa vez, Lewis participava num seminário e ouvia pacientemente enquanto um estudante, querendo agradar ao eminente especialista em História Antiga, discorria sobre a superioridade da Idade Média, quando Igreja, Estado e sociedade compartilhavam uma ideia integrada do mundo e da vida, em relação à Era Moderna. O moço lamentava não ter vivido então. Ao que Lewis perdeu a paciência e pediu para ele parar de dizer bobagens.
- Feche os seus olhos - disse Lewis - e concentre sua alma sensível em como seria exactamente sua vida antes do clorofórmio.
Conceitos românticos sobre uma vida idílica num mundo pastoral, antes que a indústria e a ciência a conspurcassem, não levam em conta a ausência de qualquer forma de anestesia, salvo o porre ou o porrete. Além, claro, da ausência de esgoto, água corrente, electricidade, penicilina e telentrega de piza. Achar que a adopção de, por exemplo, um monitor de TV na beira do campo para o quarto árbitro ver se a bola entrou ou não entrou e avisar o juiz comprometeria a pureza do jogo é um pouco como saber que já existe o clorofórmio e não usá-lo, porque sentir dor é mais autêntico.
Agora, você também pode ver o futebol como um último foco de resistência antes de que a tecnologia, que já domina o nosso quotidiano, também se aposse de todas as nossas vias de escape, como já acontece nos esportes americanos. Neste caso, é romantismo justificado.