Opinião

O dia em que Paolo Rossi me roubou a infância

O Itália-Brasil do Mundial de 1982 é tão importante para a história do futebol que devia figurar num dicionário da memória coletiva. Ainda não aconteceu, mas já teve a sua peça de teatro. Vi-a há uns bons anos no pequeno auditório do Rivoli, numa encenação dos Artistas Unidos a partir do texto de Davide Enia e da genial interpretação de José Airosa.

Itália-Brasil, a peça, parte de um excerto da vida de uma família siciliana à volta da TV durante o jogo. No fundo, é um tratado de bizarria e excesso, tão anedótico como melancólico. Decantado de todas as impurezas da razão, de forma sibilina e a partir do futebol, o quotidiano ali retratado revela-se épico, despótico e rasteiro, cada faceta a seu tempo e ao sabor dos momentos do jogo. E dos seus heróis.

Para mim, no entanto, aquele 5 de julho de 1982 é o dia do vilão.

Ou o dia em que Paolo Rossi me roubou a infância.

Eu, então já "argentino" desde 1978, não resisti e atirei-me de braços abertos para esse Brasil de balanço perfumado, que nenhuma criança amante de bola julgava possível nos seus melhores sonhos. Para os meus 11 anos, aquela era uma equipa de Disneylândia, uma lenda futebolística com encantamento, fogo de artifício e super-heróis (Sócrates, Zico, Falcão, Júnior, Eder). Um espetáculo arrebatador ao qual nem sequer faltava um pontapé-canhão e dois patetas de serviço (o careca da baliza, Waldir Peres, e Serginho, o "irmão metralha").

Paolo - quem? - Rossi era um estranho. Uma espécie de pau italiano de virar tripas com manias de jogador, mas, julgava eu, condenado a figurante. O carrossel brasileiro não podia encravar ali.

Em casa dos avós paternos borbulhava a conversa do costume: que o Brasil tinha uma ditadura militar, que a Itália era uma democracia, etc, etc. Para uma família politicamente comprometida, o futebol nunca era só futebol. No tempo em que Portugal falhava "Europeus" e "Mundiais" de forma dramaticamente fadista, havia sempre bandeiras, hinos e camisolas que se adotavam como "nossas". Para o clã familiar, o Brasil não estava entre elas e a Itália era o que havia mais à mão para demonstrar a superioridade moral das liberdades. No meu caso deu-me para tiques de pequeno tirano: a tragédia emocional que vivi então - com choradeira na banheira e tudo - só tinha sido possível porque o parque de diversões que era esse Brasil deu liberdade a mais um patife chamado Paolo Rossi.

Paolo Rossi faleceu esta semana e deixou uma autobiografia que diz quase tudo sobre ele: "Eu fiz chorar o Brasil". O título peca por defeito: Paolo Rossi não fez chorar o Brasil. Fez chorar o mundo inteiro fora de Itália e roubou a infância aos catraios que demoraram muitos anos a digerir o facto de os super-heróis brasileiros terem sido derrotados pelo homem alfinete vestido de azul.

Acontece, porém, que o futebol tem uma faceta retorcida. Ou redentora.

Para bem do futuro da memória, quem ganhou aquele Mundial foi o Brasil. É desse Brasil que nos lembraremos e falaremos quando aquele ano vier à baila nas conversas em família ou nas mesas de amigos. A Itália levantou a taça, mas a fantasia e a utopia podem sempre mais dos que troféus de caça.

Há uns anos, vagueando por Barcelona, fui dar a Sarriá, local do mítico estádio daquela tarde de julho de 1982. Quando percebi onde estava, veio-me um arrepio à espinha, desses que recalcam dolorosas memórias. O estádio, soube então, fora demolido em 1997. É justo. É o que deve acontecer aos cemitérios dos sonhos.

P.S. - Deixo um abraço coletivo à redação d´O Jogo e junto-me ao luto pelo adeus de Carlos Machado, "carregador de pianos" e de afetos, praticante incorrigível da camaradagem. Do meu tempo de jornalista em construção, devo-lhe o apoio, o humor, a força e o conselho certos. E guardo, com saudade, a imensa sabedoria que legou sem nunca se pôr em bicos de pés. É desses o Olimpo.