Benge, nome incontornável na boca de muitos adeptos, deixou memórias avassaladoras e a relação com Meirim catapultou-o como verdadeira estrela
Corpo do artigo
Histórico das balizas, garras bem felinas, um espetáculo à parte descrito por Meirim... Benge (com “g” e não “j”, como era comum nos cromos) salta como imortal de geração em geração, ídolo no Varzim e no Farense, reconhecido por todos os rivais e contemporâneos. O tempo ainda faz justiça ao homem que trocou Angola por uma carreira em Portugal e que conseguiu ser grande sem triunfar no Benfica. Carregou esse fardo, fez do fracasso um estímulo imbatível em cada duelo, fazendo dos adeptos verdadeiros devotos, tamanha a coleção de momentos de inspiração. Aos 81 anos, residente em Faro, Benge segue com o livro da vida bem aberto, honrado pelo que fez, mergulhado em páginas pintadas de glória, fotos imensas de um meteorito que rebentava nas pernas de cada avançado em cada janela para o golo. A chamada apanha Benge no Algarve, um destino encantador desde que foi dono das redes dos leões de Faro, de 1971 e 1976.
“O Farense foi especial, mas, atenção, o clube onde me senti sempre em melhor forma e onde fiquei magoado por não ter ido à Seleção foi o Varzim. Fiz lá uma época incrível, era considerado o melhor em Portugal, mas existia o peso da hierarquia dos grandes”, lembra, concretizando a deceção que foi acumulando. “Custou-me muito não ir à Seleção, era o grande objetivo que aspirava e senti injustiça, porque sabia que não era inferior aos que lá estavam. E se tivesse uma oportunidade, sabia que tomava conta do lugar. Nunca me senti inferior a Damas, Bento ou José Henrique, que foram surgindo. Antes pelo contrário. Garanto que faltou coragem de levarem alguém de um clube menor”, acusa o mítico Benge, explicando a aura imbatível que transmitia aos companheiros. “Já no Benfica o Costa Pereira pedia para jogar, mesmo que tivesse lesionado, porque temia que se eu entrasse, ele corria o risco de não voltar ao onze. Com o Meirim, no Varzim, eu estava tão confiante que os meus colegas me perguntavam no começo de cada jogo ‘como é?’. Eu apenas dizia que o 0-0 era seguro, o resto era com eles! Conseguimos ganhar nas Antas, Alvalade, só faltou ao Benfica. Mas havia Eusébio e companhia limitada”, explica. “O Meirim avisou-me uma altura que seria chamado à Seleção, mas acabei por não ser, porque ele e o Pedroto andavam de costas voltadas. Toda a gente dizia que devia ir. Estava numa forma incrível, se em vez do Varzim estivesse num dos grandes, não dava hipótese a ninguém!”, expõe, envolvido pelas memórias das investidas psicológicas de um técnico de empirismo notável.
“Meirim mexia muito comigo, trabalhava imenso com ele. Ele dizia que eu era o melhor do mundo, mas eu não via nada disso, não era chamado. Os companheiros sabiam que se marcássemos primeiro já não perdíamos. Diziam aos rivais que nem valia a pena chutarem. De facto, inspirava-me e tomava conta da baliza”, certifica, recuperando outras impressões que definiram o seu rumo, abdicando do conforto num Benfica onde jogou de 1962 a 1965. “Pedi para sair porque não jogava, embora o Riera me tenha dito que um dia o lugar seria meu. Não tinha personalidade para ficar a limpar a cadeira de suplente. Fui campeão, mas preferia levar uma injeção a ficar no banco. O Costa Pereira tinha conquistado o seu nome, apesar de alguns patos à grande, não havia espaço, eu estava conformado”, sustenta, desafiado a vingar com chapada de luva branca.
“Tive sempre a vontade de provar e demonstrar que devia ter ficado como titular do Benfica. O que me aconteceu a mim no Benfica, aconteceu a vários, todos bons, não contávamos. Foi o Barroca, o Nascimento, o Rita. Vi alguns ficarem esquecidos, vi aquilo e tinha de ir por outro lado. Vários diziam, como Monteiro da Costa e Pedroto, que eu tinha azar, que muitos treinadores preferiam olhar para cima do que para o chão”, conta Benge, exemplificando um trunfo na apaixonante ligação ao jogo.
“O meu forte era a arrastadeira. Perguntavam como apanhava algumas bolas, mas, sempre que me apareciam avançados sozinhos, atirava-me para cima deles, deslizava até lhes roubar a bola das pernas. Dificilmente marcavam. Quase parti a perna ao Manuel Fernandes, mas também sofri muitos pontapés na cabeça. O Capitão Moura nunca se encolhia. Outros tinham medo, o Torres perdia todas as divididas no ar, Gomes dizia logo ‘esta é tua para não saltar’. Imperava o Chico Leão, a alcunha que me foi dado pelo Matine”, partilha, inevitavelmente também convocado a brilhar por Eusébio, a quem chamava de ‘catembe’. “Era o que ele gostava de beber, vinho com coca-cola.”
“Quando ele engatava, a bola parecia um cometa. Lembro um livre que ele apontou com uma força extraordinária. Escondi-me atrás da barreira, de cócoras. Quando ele chuta eu disparo em voo e desvio a bola para canto. Foi um remate incrível, força e jeito, mas o meu voo foi tremendo. Ele vem cumprimentar-me e perguntar-me como tinha feito aquilo? Ficou a olhar para mim incrédulo. Sei que lhe diminuí o ângulo, e tinha uma coisa boa, ia com um braço a puxar o outro. Ia para a praia com os meus filhos e brincava muito com isso de voar com os dois braços”, precisa, mesmo reconhecendo outras noites de pesadelo. “Sofria muitos golos, ainda pedi a um jogador, o Salvador, para ir em cima dele, derrubava-o muitas vezes. Mas vinham os livres e ele fazia golos incríveis”.
Horror cheio de controlo
Benge faz dois jogos pelo Benfica na época 1964/65. Determinado a ser um guarda-redes de eleição, o angolano tenta manter-se afastado de movimentos de contestação ao Estado Novo, sabendo que a fatura a pagar seria altíssima, pela experiência de terror vivida pelo pai, condenado a 10 anos no Tarrafal, e por um apelido inquietante para a PIDE. Com a recente passagem dos 50 anos da revolução, que desimpediu caminhos para a independência, Benge é uma testemunha estreita, dolorosamente, do peso do colonialismo e dos avanços iniciados pela libertação de Angola.
“Tive muitos problemas com a PIDE, mataram o meu pai no Tarrafal por causa da política. Perdi pai, irmãos, tudo muito triste. Ele era funcionário público nos serviços de saúde de Luanda. Era uma pessoa corajosa, falava bem”, recorda, percorrendo angustiantes memórias. “Quando eu cheguei a Portugal, fui logo chamado à PIDE, que só podia jogar futebol. Para não me meter em assuntos políticos. Já um irmão tinha vindo jogar para o Salgueiros como ponta-de-lança”, afere, explicando os contornos da tragédia. “A morte do meu pai foi-me comunicada num estágio. Ele foi preso na Páscoa em Luanda, até dançou, coisa que nunca fazia, porque sabia o que ia acontecer. Foi para o Tarrafal e lá foi morto, o corpo veio para Portugal e o MPLA é que o recuperou mais tarde. Tive quase toda a família apanhada, andavam atrás do apelido. Foram tempos terríveis, safei-me e quis sempre desligar-me da política”, relata. Eram as marcas de um regime que estrangulava liberdades individuais. “Sabia de um ‘anjo da guarda’ que me perseguia para todo o lado, monitorizava os meus passos. Estava a ser controlado, mas no Benfica tive bons amigos que me ajudaram a minimizar isso. O tempo que vivi no lar do jogador foi das melhores fases. Torres era um brincalhão”, brinda Benge, que traumatizado com que a PIDE fizera ao seu pai, estava a leste do avanço até às conquistas de Abril de 1974. “Na revolução, tirara um curso de treinador, em Pina Manique. Não sabia de nada, evitava saber coisas, porque já tinha sofrido muito, perdido família. Ficava em casa para evitar chatices.”
“Insultado, mas ficava vaidoso!”
Falecido em 2001, com 66 anos, Joaquim Meirim foi um profeta da ascensão de Benge. É uma cumplicidade que extravasa qualquer contexto temporal. Os lucros foram imensos, robustecendo a personalidade. “Meirim impunha seriedade, impulsionava os jogadores animicamente. Recordo uma jogada ensaiada em que eu chutava forte para o Nunes Pinto, um avançado, isolava-se e dava uns chapéus. Aquilo resultava”, descreve, deixando curiosas evidência da liderança desconcertante. “O meu suplente era o Castro, que era bastante baixo. O Meirim dizia que enquanto aqui estiver o Benge, tens de aguentar o banco. Preferia-me com dores no joelho do que fazer jogar o outro. Eu pedia para descansar, não fazia o aquecimento, questionava como jogaria e jogava. Era tipo aquece, dá umas picadinhas e ficas pronto”, nota. Realmente, havia um efeito psicológico, alguns adversários viam-me na baliza e achavam que estavam tramados. Adorava ambientes difíceis. como nas Antas, quando mais insultado mais vaidoso ficava”, admite Benge. Meirim, surpreendia...até Pedroto. “Nas Antas, num torneio, o Pedroto mandou um jornalista ao nosso balneário para saber a equipa. O Meirim dá os jogadores e avisa de um Pedro Neto na baliza como alguém à experiência ex-Benfica que ia jogar. O Pedroto ficou admirado! Era eu, Pedro Benge Neto, mas ninguém me conhecia com esse apelido. Fizemos um grande jogo e vencemos.”
“Preto ali e aqui, macaco...”
O racismo segue como um flagelo perturbador, exigindo respostas que possam sanear comportamentos grosseiros de adeptos deslocados do prazer do jogo. Mais combatido hoje, sem deixar de embaraçar. Benge, um negro absolutamente espetacular, herói regular da sua equipa, passou por muito...por tudo o quanto hoje nos repugna e repulsa, que paralisa jogos e envolve identificação de adeptos como elos prejudicais, a banir... “Sofri bastantes insultos. Muito de preto ali, preto aqui. Eu procurei sempre não ligar muito. Retorquia ‘está bem’ ‘que queres que faça’. Era algo que acontecia em vários campos, mal entrava no relvado chamavam de macaco. Lá respondia ‘ainda bem que sou macaco, se a bola for alta vou lá em cima buscá-la, pois o macaco tem muita agilidade’”, recorda, partilhando as grosserias que maltratavam os ouvidos. “Sofria mais quando viravam os insultos para a minha mulher. O que sei é que frente a frente ninguém me insultava”, atira, abordando um meio hoje mais higienizado. “Vejo coisas esporádicas, as pessoas estão mais civilizadas. No meu tempo era, sem dúvida, muito pior.”
“Longe de mim, soco tudo!”
Benge é ainda, aos 81 anos, um festim de memórias. “Lembro um empate com o Sporting do Fernando Vaz, ele e Meirim não se suportavam e já sabia que ia sobrar para mim em Alvalade. O Vaz diz logo que vamos levar três ou quatro. O Meirim responde-lhe ‘só vais marcar algum golo se o Benge não estiver na baliza’. Dito e feito, apesar dos insultos que me dirigiam, sequei o Lourenço e o Figueiredo. Avisava-os para não aparecerem perto que socava para o meio-campo e que se falhasse a bola socava as cabeças deles. A malta do Sporting gozava-os imenso, faziam troça a sério, ‘parece que têm medo do Benge”, rebobina, ainda espirituoso, o antigo guarda-redes de Farense, Varzim, Leixões, entre outros. Lendário pelo que defendia e pela forma como bloqueava os arremessos de fúria e desdém das bancadas.
“Defendi e agora vou ganhar...”
De compêndio, procurando articular a reação com racionalização do momento. O racismo percorria vários campos em Portugal, Benge interiorizara como se proteger. “Não sabiam o que me chamar, mas sabiam que tinham de insultar. Na Tapadinha defendo um penálti e um grupo de miúdos gritava ‘seu preto, seu preto’. “Defendi e agora vou ganhar”, reagia. “Ligar é muito pior, pode aparecer um maluco que atira uma pedra. Por outro lado, estavam os miúdos do Farense atrás da baliza a fazer barulho com latas e a cantar o meu nome.”